Por Flávia Baptista Palacio
O consumo não pode ser compreendido levando- se em consideração apenas variáveis de natureza econômica, deve-se levar em conta também as variáveis socioculturais. À medida que essas dimensões culturais e simbólicas foram ganhando importância na explicação do comportamento do consumidor, os departamentos de marketing das empresas, os institutos de pesquisa de mercado e as agências de publicidade passaram a recorrer ao aporte antropológico, recrutando muitas vezes profissionais com formação em Antropologia. O uso do método etnográfico na gestão de marketing não é um delírio de alguns executivos extravagantes. As empresas têm obtido resultados concretos com esse recurso.
Na Gatorade do Brasil, os funcionários foram estimulados a visitar academias de ginástica para observar e conversar com os consumidores. Durante uma dessas visitas de campo, descobriu-se que os consumidores só tomavam a bebida depois que retornavam para casa, uma vez que não a levavam para a academia com medo que a garrafa de vidro se quebrasse nem consumiam na cantina por causa do preço elevado. Essa informação foi a gênese do lançamento do Gatorade em garrafa plástica.
De todos os exemplos que eu poderia citar, um chama mais a atenção. A então filial da Unilever no Brasil, a Gessy Lever, transformou seus gerentes em aprendizes de antropólogos. Com gravadores a tiracolo, eles passaram a viajar pelo Brasil para conhecer como vivem e se expressam os consumidores de baixa renda. Por trás do programa havia a intenção de desenvolver o mercado de produtos para essa faixa da população.
Nada a ver com os bons tempos em que, para desenvolver e lançar novos produtos (ou aperfeiçoar outros já existentes), bastava identificar o público-alvo, fixar o preço e aprovar a campanha de propaganda. Tudo isso sem abandonar o conforto e a privacidade de um escritório refrigerado. Isso é passado. O exemplo da Gessy Lever fez com que muitas empresas percebessem que seus gerentes e diretores estavam muito distantes do consumidor.
Entender mais a fundo porque as pessoas compram, de que forma consomem, como é que os grupos se classificam a partir do uso de determinados objetos, esses são espaços que podem ser ocupados pelos antropólogos. A leitura da cultura brasileira e a percepção das diferenças culturais em um mundo globalizado podem ajudar a empresa a antecipar-se às ameaças e/ou oportunidades ambientais. A “etnografia de grupos de consumidores”, que busca mapear as motivações de compra a partir da tríade indivíduos–grupos de referência–produtos, auxilia na interpretação dos significados que os membros desses grupos atribuem a determinados produtos e a seus concorrentes e desvendar a forma como esses produtos são utilizados.
O saber antropológico muito pode contribuir para o avanço da gestão de marketing. Não parece ser por outra razão que um número crescente de empresas venha demandando os serviços desses profissionais. Entretanto, não posso deixar de levantar algumas questões a respeito desse recurso. O conhecimento antropológico passa a ser uma sofisticada arma para a dominação simbólica do consumidor? Ao construírem estratégias de marketing lastreadas em interpretações antropológicas cada vez mais refinadas, não estariam as empresas ludibriando os indivíduos? Até que ponto estes estão capacitados (ou dispostos) a exercer a cidadania, se contrapondo a tais condutas? Quais são os limites éticos dessa manipulação das dimensões antropológicas do consumo? Responder a essas questões não é uma tarefa fácil. Elas exigem um debate apurado. Portanto, não pretendo discuti-las nem resolvê-las aqui. De todas as formas, se o risco de o conhecimento antropológico ser apropriado de forma inoportuna no universo do marketing existe, e isso parece inegável, é preferível que os antropólogos corram esse risco e entrem nesse complexo jogo de interesses.
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